sábado, 26 de outubro de 2013

REFLEXÕES (?)

MEMÓRIAS DA BELA VISTA - FORTALEZA

Reflexões sem Nexo

Cachorro late, filho chama, carro buzina, mosquito azucrina, forró forroa e Célia incólume, impassível colosso. Posição justificada plenamente pela função que exerce – estagiária/aprendiz de santo. Inventa de me nomear substituto e no primeiro dia ameaço abandonar o posto. Receio que minha vocação não é muito grande. Após idas e vindas e muita insistência, e, me parece, até um pouco de chantagem emocional, aceito exercer meia função e fico imaginando que se eu cumprir direitinho minhas obrigações devo virar metade santo e metade... Bem já se vê aqui de que tamanho é realmente minha vocação. A função é exercida na calorenta câmara fria de um leito de morte. Assusto-me e me arrepio todo com apenas uma suave brisa. De vida. ”Faz escuro mas eu canto” (Tiago de Mello).
Chega Airton e me traz um caudaloso rio do que Rubem Braga chama de “a essência do sofrimento humano, a traidora inconsciente dos segredos d’alma”: a lágrima. Ganha, na futura próxima visita a proibição de chorar, pelo menos na câmara. Terá, como para os fumantes, uma área restrita ao choro.
Célia faz escola e nenhum dos semi-estagiários larga uma só essência da traidora, mesmo com o risco de serem tachados de insensíveis. E a capacidade que possui o ser humano de ser insensível me deixa perplexo. Mergulho um pouco em meu interior e imagino quantas vezes já não dei esta mesma sensação a tantos outros. Tenho exemplos palpáveis na família em nível bem alto. Felizmente a tolerância está sempre por perto e não por acaso atende por uns nomes femininos. É Paula, Solange, Célia...
A alma vibra e esbarra em um soluço, ainda não será desta vez que serei traído. Tinta, bendita tinta, cabe em todo lugar e tudo em ti cabe. Paremos, ou pelo menos, façamos um intervalo, senão a tinta enrosca em tudo e ao invés de texto teremos um Salvador Dali, ou se ainda texto, teremos personagens de Ionesco. Surreal, bastante su.
Por canais ultramodernos chega-me de última hora a notícia de que Fuleiragem está fuleirando. Evidente que é o esperado e compreensível, no atual contexto, mas...
Raimundão, Raimundão, tu e o Drumonnd tínheis razão, e isto é uma (pobre) rima, não uma solução. No meio do caminho tinha um monte de pedras, e eu não sei poli-las, como João Cabral, de quem, aliás, fui tentar ler alguns versos e esbarrei em várias pedras que não me pareceram nada buriladas. Muito pelo contrário, eram mais o cascalho do semi-árido no sol seco do meio-dia. Como eu já estava cheio das misérias psíquicas, não suportei a descrição das físicas. Que descanse em paz e me aguarde. Amanhã mesmo estarás comigo no Paraíso.
Eu deveria estar plantando milho e não caçando pérolas, certamente teria o meu presunto garantido. Não devemos jogar grãos aos homens.
O que não rendem duas semanas na Bela Vista! Os traumas adormecidos vêm à tona e o mundo torna-se novamente meu devedor – irreal, é certo, mas não na minha ótica. Me deve sim, e exijo pagamento em vida, quero alguma vida. (Não me confundam, quero vida, não sangue.)
Na Escola Aberta busco alguma vida. Encontro sangue: estupidez, insensibilidade, incompetência. A essência da miséria humana em uma só pessoa, não poderia esperar mais. Maravilha. Eu quero a Bela Vista! Quero a câmara de sofrimento e dor, não quero vida. Desisto do mundo – sofro de SUDBV – Síndrome Unipolar Depressiva da Bela Vista. Esta doença foi descoberta recentemente e afeta cinco em cada quatro pessoas nascidas ou que viveram na Bela Vista e que, após saírem, por qualquer motivo tiveram que voltar lá. Não está bem claro mas, segundo algumas pesquisas a cura só acontece com 50 a 60 anos de distância do tal Bairro e com pelo menos uma sessão diária de psicoterapia, com direito a uma folga no último domingo do mês. Como a pesquisa é recente não se sabe ainda o percentual de sucesso mas as previsões não são nada otimistas.
Dizem, e minha depressão não deixa que eu acredite nisto, que tudo que nos acontece de mal tem um lado bom. No caso específico de minha volta à Bela Vista pode ter ocorrido algo bom. É que, pelo menos lá, voltei a ler. Eu que começara no mesmo local e pelo mesmo motivo: fugir do mundo, esquecê-lo já que ele não me esquece. Não tenhamos ilusões, não será um recomeço. Parece até que reli Mágoas de Augusto dos Anjos, pois estou destilando-as por todos os poros. Faz parte. C’est la vie.
Cachorro gane, filho reclama, carro azucrina, mosquito ferroa, forró zoneia e Célia em seu mosteiro particular zen-budista. Não é com ela, já deve estar em um segundo estágio, aprovada com louvor no primeiro, e eu na minha metade, tentando, a todo custo, ser reprovado. Minha outra metade de estagiário também tem vocação: não falta ao serviço puxa o saco da chefa, poderia até assumir minha parte e, pensando assim, cometo um abandono de posto sem aviso prévio. Saí voando para o aeroporto Pinto Martins, com ou sem passagem.
Cai um avião com vazamento por todos os lados, até o humano. Eu também fico me vazando, de medo. Continua fazendo escuro, e eu não canto, nem cito Drumonnd ou João Cabral.
Airton vai a Ouvidora-Mor (D. Maria Nonata dos Anzóis Pereira) e reclama que a área restrita às traidoras lágrimas está por demais restrita. Diz ele que é dentro de um banheiro, com a porta fechada e com a recomendação expressa de só chorar trepado no vaso. Pelo menos não precisa gastar água. Cruel. Com certeza os laureados cientistas da Bela Vista descobriram que o choro é infecto contagioso e causador de várias doenças pulmonares, até para o chorão passivo. Estou me superando, as reflexões estão cada vez mais sem nexo, e nem sei se merecem o termo reflexões, muito chique, pedante mesmo. Quem sabe pouco, logo diz tudo que sabe: eu já disse no título. Definitivamente paremos! Pelo menos em uma metade o título é bem adequado.
São 35 minutos da madrugada de 11 de agosto (mês de desgosto). Espero que o dito popular não seja correto pois ainda falta muito para terminar o bem aventurado e até aqui ele me tem dado bons dissabores. Se Julho já me trouxe a viagem a Fortaleza e o conseqüente aumento da depressão, neste eu esperava que ela desocupasse o barraco mas infelizmente não aconteceu. Fiz algumas mandingas, briguei com minha paciente esposa e com a psicóloga, mas a moleca continua firme e forte. Vou ter que mover uma ação de despejo e rezar pro juiz não ser do mesmo time que ela. Mas, como eu disse, o mês não tem sido nada bom e quem foi ameaçado de despejo (ou seria de morte?) fui eu. E por duas vezes. É, como dizia o grande filósofo Paulo Rocha, eu devo estar rezando pouco. Falando em Paulinho e sua filosofia não seria justo deixar de citar sua maior pérola: se é, é. (Ah! Finalmente achei uma pérola.) Certamente estas são as quatro letras mais sábias que a humanidade criou ou conheceu. Creio até que não existe Nobel de Filosofia porque não sobraria para ninguém. Mais um fuleiro e sua tolerante Vera e, falando em Vera, será que eu esqueci alguma?
Por algum tempo fiquei imaginando se o mês estaria mesmo ruim ou seria somente eu praticando o meu esporte preferido – a reclamação – mas na seqüência me falta luz (física, pois a outra não a tenho há tempos) e com a queda da força me vão também a Internet e a TV a cabo que não voltam tão logo quanto a outra. Pelo menos a reclamação desta vez tem algum motivo já que no mesmo dia eu falara para a terapeuta que moro no computador e durmo no sofá, em frente à televisão. Quem não tem lugar onde morar ou, pelo menos para ter os seus pesadelos favoritos, tem direito a uma reclamaçãozinha, né? Se não tiver, vamos tentar conseguir através de uma emenda constitucional ou, quem sabe, incluir na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ficaria lá em belas letras garrafais, no artigo primeiro: TODA PESSOA TEM O SAGRADO E INALIENÁVEL DIREITO DE RECLAMAR DE TUDO E DE TODOS. E no parágrafo único: este direito não termina onde começa o do outro. Como diria João Vitor, meu filho de 11 anos: irado.
Ser uma pessoa boa é suficiente, entretanto esta pode ser insensível. Todavia o contrário má/sensível não existe, e assim o primeiro pode dar-se ao luxo de ser fuleiragem, muito embora, é claro, não seja o recomendável. Que se há de fazer, a perfeição deve existir sim, mas vive bem escondidinha e buscá-la deveria estar sempre presente nos pensamentos de qualquer um, mas, o característico do homo sapiens(?) é se fixar em pequenas coisas, esquecendo, na maioria das vezes, o que é realmente essencial, maior. Deformação de foco, que é uma das minhas especialidades.
Cachorro morre (de sarna), filho some (namora), carro enguiça (barulha), mosquito cala (no tapa), forró acaba (em briga). Célia tem dois olhos, dois ouvidos, uma boca. Quase tudo vê, muito ouve, pouco fala. Limpa banheiro, troca fraldão e até, às vezes, dorme. Começou um novo dia.

Stenio, num bom período de depressão entre julho e agosto de 2007.

2 comentários:

  1. São fases amigo!
    Que bom que você registrou!
    Estou adorando ler!
    Luzia

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    Respostas
    1. Dentro de um período já difícil ainda se tem uma perda de 60 anos de convivência e muita luta. Eu não tinha nem o dinheiro da passagem para ir vê-la, meu irmão, Ernandi, pagou.
      Quando terminei o texto, que fala muita da minha cunhada Célia (que cuidou da velhinha nos seus últimos anos), pensei em não mandar pra ela, Célia, por achar depressivo. Rosi, minha filha, leu e disse que não, eu retratara a tristeza do momento, e que terminara até otimista, com o "começou um novo dia". Eu também gosto muito do final. Interessante que eu não lia mais nada, no meu período mais depressivo, e lá, com tudo isso e ainda a morte à vista, eu lia. Talvez, como falo no texto, para esquecer da vida. Li um pouco de Cecília Meireles, e como um dos poemas era sobre a morte, eu, tentando atender meu irmão que pediu para registrar a luta da Célia, escrevi o texto mas, antes dele, e inspirado em (ou plagiado de) Cecília, saiu este, abaixo, que se não me engano foi o primeiro que escrevi, e gosto muito.

      Pretenso Poema

      Escrever (para quem sabe)
      É arte
      Frágil como o coração vetusto de uma pomba
      É paz, é vida, é Célia, bela Célia.

      A morte
      Asa de águia, forte e lépida
      Olímpico atleta puro forte
      Inteiro e quase nada, quase arte.

      Em versos
      Tão fugazes quanto a brisa/arte
      Quis re(des)fazer esta equação
      De morte.

      Pulso, coração, asa, tão frágeis, Célia
      Unem-se num derradeiro esforço
      Contra a águia
      Que em um átimo parece destruída.

      Lúgubre engano, a Fênix
      Em meio tempo é novamente a morte
      Mais forte e ágil e quase
      Bela

      Vista de longe
      Assim quase me engana
      Ò Senhor, troque-me os anjos, eu quero
      A Vida, a Luz, a Fortaleza Célia

      C elestial, eis a palavra
      E xata
      L inda, leve, santa e que,
      I nquestionavelmente representa o
      A njo. Celestial. Célia.

      Com um beijo de força e vida
      Stenio
      Julho de 2007

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